16/01/2007

Morar sozinho

“aquela antiga boa sensação de... estar onde ninguém pode alcançá-lo”

Morar sozinho é esquecer uma panela de Miojo no fogão. É freqüentar o endereço dos fantasmas. É abrir uma lata de sardinha às duas e meia da madruga. É, no meio do dia, sentir vontade de telefonar para si mesmo. Morar sozinho é foda, mas é legal.

Morar sozinho é observar a fruteira vazia. É enganar a si mesmo na hora de acordar (só mais 15 minutos, só mais meia hora, só mais uma horinha). É dormir e acreditar que tem mais gente em casa. É receber uma ligação da síndica. Morar sozinho é duro. Estranha arte, a de morar sozinho. Arte dos adiamentos eternos e das conversas com a geladeira (também vazia).

Assim é morar sozinho: acordar, lavar o rosto, escovar os dentes, tomar duas Neosaldinas, sair para o mundo e estar sozinho no mundo. Quando em casa, fingir que não tem ninguém. A campainha quebrada há mais de nove meses. O sono diante da TV ligada, um copo d´água pela metade, um cordão de sapato feito cobra no tapete. Uma cama em desalinho. A TV ligada (e o filme continua dentro da cabeça).

Morar sozinho é ler o jornal, de manhã, com profunda desatenção. É voltar no meio da noite e não encontrar ninguém em casa. É pedir uma pizza inexistente e uma Coca “normal” de 600. É ver que o entregador de lanches ficou de cabelos brancos.

Morar sozinho é sentir falta do amigo imaginário da infância (que hoje deve estar casado e com três filhos, futebol aos sábados, restaurante aos domingos). É viver, todo dia, as últimas cenas de 2007.

Morar sozinho é perder o sono por coisas idiotas (do tipo: “deveríamos vender Roraima e Rondônia pra França”). É esperar o fim de semana, o vento leve e o silêncio respeitoso das manhãs de domingo, quando não estou sozinho. É atender a um telefone do pai às 7 e meia da matina.

Morar sozinho é dar nome aos objetos, nome e sobrenome. É ter problemas com as pombas que insistem em fazer ninho à janela. É ter uma coleção de miniaturas e uma infinidade de livros não-lidos. É tomar banho ouvindo Beatles. Morar sozinho é exercitar a loucura de nascer todos os dias no tempo. É caminhar entre os meses como quem chuta pedras no chão. É legal, mas é foda.

E a campainha – a campainha continua quebrada.

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